segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Helton Elias | N’gambu é Cabo Delgado

 

N’gambu
é Cabo Delgado

 

N’gambu enfia-se na gruta da fobia

A fobia sofre de hipertimesia

A hipertimesia ama N’gambu

N’gambu já não faz festa

A ausência da festa é causada pela fobia

A fobia só lembra-me ninharia

 

O ciclo é o mesmo

O mesmo, é o sofrimento

O sofrimento é causado por N’gambu

N’gambu coabita na floresta da fobia

A fobia apenas recorda-me patavina

A hipertimesia namorisca N’gambu

 

A noite é permanente

Permanente, é a ausência de N’gambu

N’gambu vive no útero da fobia

A fobia foi-lhe diagnosticada a hipertimesia

A hipertimesia é amante de N’gambu

N’gambu é Cabo Delgado


Helton Elias (2020)

Helton Elias | As Abelhas de Gorongosa

 

As Abelhas de Gorongosa

 

Somos abelhas sem colmeia

Estamos divididos em raças de origem

As apis do Norte de Muxúnguè reservam-se apenas à geleia

As meliponinis do Sul de Inchope são para aplicação medicinal

Essas produzem pouco mel e muito polém

É a razão de nunca termos uma ceia

 

Se os triba-regionalismos não existissem,

seria nosso o reino selvagem

A colmeia estaria no poder

O trono de Gorongosa seria o umbigo maioritário,

tanto pela força quanto pela eleição

Ora, o reinado deve ser do comum aval

 

Os leões não são os mais fortes da selva,

são os que mais nos amendrontam pelos seus rugidos,

mas somos imbatíveis com os nossos zumbidos

Uma colmeia de apis e meliponinis dilaceraria a dinastia

Dos leões, somaremos dias de corujar restos

O nosso horizonte é carregado de dias funestos,

com balões de desentendimento e gorduras de discórdia

 

Somos abelhas

porque não tivemos escolhas

Crescemos trabalhando para outros seres engordarem

Os nossos pais também sempre foram servos,

educados desde cego a juntar migalhas

e a cumprirem a vassalagem

 

O rei leão

e sua famíla real

precisam de muito mel e muito polém

É a razão

de termos nunca um descanso ideal

O rei leão

sabe que a nossa rebelião

é surreal

A nossa união

é uma savana inanimal


Helton Elias (2020)

Helton Elias | Preto de Deus, Branco de Diabo

 

Preto de Deus, Branco de Diabo

 

Sobre as cores,

patenteio a minha ignorância

Não sei diferenciar o branco do preto

Por quê racialmente o branco é o santo espírito?

Por quê racialmente se dorme quando nasce o escuro?

Por quê racialmente se trabalha quando deseparece o preto puro?

 

As cores têm o significado que a gente assaca

Há anos sepultados o branco tem sido o luto

A brancura amou-me na escravatura

Fico cego nessa cor, na bravura

de Martin Luther King e

Nelson Mandela

Mas noto

nela,

a abundância da neve

desértica da água movidiça e leve

 

 

Sou macaco de cor e pensamento,

experimento do medicamento

para a efermidade sã criada

com metas de extinguir

a minha existência

 

Por motivos

da minha pele negra,

sou aos vossos multicores olhos,

sinónimo certo e literal da peste negra,

mesmo que a doença tenha ovos nos nilhos

da vossa nobre, bem-aventurada e eminente alvura

 

Helton Elias (2020)

Helton Elias | Plantar Filhos em África

 

Plantar Filhos em África

 

Vivemos para plantar filhos

As nossas machambas são compadecidas para isso

De manhã plantamos o judeu-errante

De noite fecundamos o capim-elefante

Nessa Terra temos muitas machambas:

uma para baobás, outra para tamarindos;

porque as nossas machambas são profícuas

Logo, temos muitos filhos

O problema está no cuidar

São muitos filhos para um só pai

É não essa tarefa das nossas machambas

É tarefa de quem planta a semente

Em Terra estrumada de ritos de iniciação tudo germina

Quando plantamos sementes as nossas machambas gemem

já que as nossas enxadas são musculosas,

cheias de estatura e porte

No meio do plantio as nossas enxadas transpiram,

enquanto isso o solo humoso lambuza-se dessas gotículas

humidecidas pelo sabor afrodisíaco

Nesse abrir e fechar do solo para lançar sementes,

o nosso contentamento e da machamba é magnético

Tudo tem terminado quando a nossa enxada mergulha no solo,

espalhando sementes diarreadas de altura de Kilimanjaro

Nesse momento, a felicidade das nossas machambas

em receber nossas sementes é visível

pelas lamúrias e

pelos terramotos


Helton Elias (2020)

Helton Elias | O Bicho-enteado

 O Bicho-enteado

 

Os ricos e os pobres ganhavam vozes

naquele ano apocalíptico e por isso sem luzes

Alguns abonavam os americanos monges

como os redentores da Terra nos seus dizeres;

e os outros, as chinesas mentes

Mas a autenticidade estava nas africanas preces

 

O temor e a incerteza prosperavam como imbondeiro enfeitiçado

As mãozinhas, as mãos e as mãozonas

ficavam tão transparentes de tanto sabão e gel aplicadas,

para afugentar o bicho-enteado

Contudo, nós africanos, não criávamos bichos-enteados

como os nossos bichos autênticos,

porque o bicho-enteado tem comido o que não resta

Ele não saciava, ameaçava a nossa espécie modesta

 

Os números vitimários brotavam como sementes de couve

nos nossos rios: Lúrio, Zambeze e Save

Nasciam mais bichos-enteados na nossa Terra

multiplicando-se como formigas após descobrir mapira

 

Pelos bichos-enteados, os nossos vizinhos e conhecidos tinham sido devorados,

obtendo o mesmo denominador e numerador genotípicos

A partir daí, suspeitávamo-nos uns aos outros

pela tempestade da saliva oriunda da boca,

pela tosse enraivada e seca,

pela temperatura ardente e voraz da testa

 

Não mais cumprimentávamo-nos com o beijo das mãos

Não mais esfregávamo-nos com calor do abraço da pele do carvão

Tudo era suspeito

De nós, o bicho-enteado precisava de muito jeito

ao cozinhar, ao chorar, ao amar, ao tossir, ao vestir, ao comprar…

 

Enfim, África precisava do seu poder supersticioso

de emendar,

de prevenir e

de curar


Helton Elias (2020)

Helton Elias | N’gambu é Cabo Delgado

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