segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Helton Elias | O Bicho-enteado

 O Bicho-enteado

 

Os ricos e os pobres ganhavam vozes

naquele ano apocalíptico e por isso sem luzes

Alguns abonavam os americanos monges

como os redentores da Terra nos seus dizeres;

e os outros, as chinesas mentes

Mas a autenticidade estava nas africanas preces

 

O temor e a incerteza prosperavam como imbondeiro enfeitiçado

As mãozinhas, as mãos e as mãozonas

ficavam tão transparentes de tanto sabão e gel aplicadas,

para afugentar o bicho-enteado

Contudo, nós africanos, não criávamos bichos-enteados

como os nossos bichos autênticos,

porque o bicho-enteado tem comido o que não resta

Ele não saciava, ameaçava a nossa espécie modesta

 

Os números vitimários brotavam como sementes de couve

nos nossos rios: Lúrio, Zambeze e Save

Nasciam mais bichos-enteados na nossa Terra

multiplicando-se como formigas após descobrir mapira

 

Pelos bichos-enteados, os nossos vizinhos e conhecidos tinham sido devorados,

obtendo o mesmo denominador e numerador genotípicos

A partir daí, suspeitávamo-nos uns aos outros

pela tempestade da saliva oriunda da boca,

pela tosse enraivada e seca,

pela temperatura ardente e voraz da testa

 

Não mais cumprimentávamo-nos com o beijo das mãos

Não mais esfregávamo-nos com calor do abraço da pele do carvão

Tudo era suspeito

De nós, o bicho-enteado precisava de muito jeito

ao cozinhar, ao chorar, ao amar, ao tossir, ao vestir, ao comprar…

 

Enfim, África precisava do seu poder supersticioso

de emendar,

de prevenir e

de curar


Helton Elias (2020)

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